Linguística de fronteira

Escolas Interculturais Bilíngües de Fronteira: educando para uma cidadania ampla
Rosangela Morello*

Fotografia: Wanderley Pessoa | retirada do site do Ministério da Educação (MEC)

Mapa da localidade de Ponta Porã, na fronteira de Mato Grosso do sul e Paraguai
A minha frente, sentadas, cinco crianças do “2º. grado” da Escuela Básica Pedro Juan Caballero me olham entre curiosas e “desubicadas”. Pergunto como estão e me apresento. Elas se remexem na cadeira, algumas sorriem timidamente, e uma delas me responde: “tudo bem!” Então continuo: “ah, você fala português?” E me dirijo as outras: “e vocês?” O silêncio é a resposta. Neste momento, o diretor da escola intervém falando com as crianças em guarani, e a conversa segue animada. Eu observo, sem entender, aguardando que me contem sobre o que falaram.

Esta situação sintetiza experiências lingüísticas vividas na fronteira do Brasil com Paraguai. Foi registrada em agosto passado, durante um diagnóstico sociolingüístico em quatro novas escolas que integrarão, em 2011, o Programa das Escolas Interculturais Bilíngües de Fronteira (PEIBF). A escola Pedro Juan Caballero, de que falamos, está localizada em Sanja Puitã, a 15km de Pedro Juan Caballero (PY), e faz divisa com Sanga Puitá, distrito de Ponta Porá, em Mato Grosso do Sul (BR). Ali, como em vários outros pontos da divisa do Brasil com Paraguai, muitas crianças são falantes monolíngües do Guarani, outras falam também o Português e outras tantas passam do Guarani ao Castelhano ou ao Português com a maior desenvoltura.

Mas não é só na fronteira do Paraguai com o Brasil que encontraremos este cenário plurilíngüe. Em toda a faixa de fronteira do Brasil com os demais países da América do Sul, do Chuí ao Oiapoque, encontraremos muitas línguas e pessoas falando fluentemente várias delas. Nas ruas, lojas e também nas escolas, a passagem de uma língua a outra não obedece aos limites administrativos que cada país estabelece.

Na história da formação dos estados nacionais, cada país construiu suas instituições para melhor controlar o território, os bens e a identidade dos cidadãos. A fronteira sempre foi o baluarte dessa política de delimitação e separação. Neste contexto, as escolas se constituíram principalmente como espaço de implementação de políticas nacionalistas, pouco aberto para acolher o cenário plural e dinâmico da fronteira (e de outras situações plurilíngües como as advindas da imigração, no Brasil).

A partir dessa constatação e propondo potencializar uma educação que melhor atenda as demandas do cidadão fronteiriço é que surge o Programa das Escolas Interculturais Bilíngües de Fronteira.

Iniciado em 2005, como um acordo bilateral entre Brasil e Argentina, o PEIBF foi, em 2007, incorporado ao Mercosul Educacional, abrindo-se para a participação dos países membros. Logo em 2008, Paraguai, Uruguai e Venezuela estabeleceram negociações com o Brasil para se integrarem ao Programa, e em 2009, iniciamos as atividades com estes novos países parceiros. Atualmente 28 escolas (14 brasileiras e 14 dos países vizinhos) distribuídas por 24 cidades pares (cidades espelhos ou gêmeas), tomam parte deste Programa.

Com o objetivo de promover uma educação que valorize o conhecimento lingüístico e cultural do aluno e do docente que vivem na fronteira, o PEIBF se organiza como um programa de trabalho desenvolvido por escolas parceiras (uma de cada país). Conforme acordo, os professores vão até a outra escola dar aula na sua língua (Português ou Espanhol) para a turma que esta no PEIBF. Na fronteira com Paraguai, também o Guarani tem feito parte do ensino. Atualmente, cerca de 4500 alunos estão diretamente envolvidos neste programa.

O PEIBF tem sua especificidade naquilo que consiste também seu maior desafio, a saber: a criação de um modelo de ensino comum, com gestão compartilhada, tendo por foco o bilingüismo e a interculturalidade. Estas características colocam o docente numa relação direta com o outro, a outra escola, fazendo com que ele tenha que reconsiderar suas praticas para aprender um pouco daquilo que o outro ensina. 

Além disso, a construção de um modelo comum supõe uma perspectiva de atuação que não imponha um modelo de ensino de um país sobre o outro. Por isso, elege-se como unidade de trabalho projetos de ensino-aprendizagem (ou de pesquisa) propostos pelas turmas. A partir de um levantamento prévio, cada turma elege uma problemática e juntamente com os professores, elaboram um mapa conceitual que organiza as atividades a serem desenvolvidas durante um determinado período de tempo. Para dar um exemplo, uma turma da Escola João Calvoso Brembatti, Ponta Porá/BR, parceira da Defensores Del Chaco/ PY.  pesquisa como se faz para chegar até a Lua. Para conhecer a vida do astronauta, estão  em contato com Marcos Pontes, com quem se correspondem, almejando formas de ter um encontro com ele.

Esta perspectiva de trabalho é sentida pelo docente como uma grande mudança, uma vez que ele está habituado a pautar sua aula em um plano previamente definido e valido para todas as turmas. Somente aos poucos o docente vai adquirindo segurança para atuar nessa nova posição. Na maioria dos casos os docentes relatam o acerto da proposta metodológica, já que seus alunos passam a ter novo interesse pelo que aprendem.

O PEBF é coordenado pelos Ministérios de Educação e conta com coordenadores locais das Secretarias Municipais e Estaduais e dos Ministérios Provinciais ou Departamentais de Educação. Os ministérios atuam nas escolas através de assessorias especializadas e contínuas, responsáveis por um conjunto de atividades como os planejamentos conjuntos e a formação docente. Do lado brasileiro, a função de assessorar o PEIBF tem ficado a cargo do IPOL, Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, de Florianópolis. Os assessores atuam em parceira com seus colegas dos demais países, sistematizando demandas e ações conjuntas. Aqui também se dá uma atuação bilíngüe e intercultural. As medidas comuns são deliberadas em reuniões técnicas multilaterais. Cada Ministério se responsabiliza, então, pelas ações internas necessárias para implementá-las. 


O Brasil enfrenta o desafio de dar legitimidade ao Ensino Bilíngüe no Sistema de Ensino Publico e, para tanto, o MEC encaminhou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) uma solicitação de reconhecimento desta Rede de Escolas Publicas Bilíngües e Interculturais de Fronteira e de definição de diretrizes especificas para o funcionamento destas escolas.  


Mapa de algumas das cidades gêmeas situadas em zonas fronteiriças latino-americanas

* Rosangela Morello é Docente da Universidade do sul de Santa Catarina (UNISUL) e Coordenadora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (IPOL)